Diante da possibilidade da CIES perder seu papel como indutora da Política de Educação Permanente, por conta de uma minuta de portaria do MS que tivemos acesso, foi escrito por Domício Sá, membro da CIES da I GERES e representando as Instituições de Ensino na CIES Estadual, um texto que nos remete a reflexão de todos que trabalham e que acreditam na educação permanente em saúde.
EDUCAÇÃO EM SAÚDE:
ALGUMAS REFLEXÕES PARA
ESTIMULAR O DIÁLOGO SEMPRE NECESSÁRIO.
Essa reflexão foi motivada por conta de uma minuta de Portaria do
Ministério da Saúde / Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação em Saúde -
MS/SGTES, felizmente ainda não publicada. Essa proposta “autoriza o
remanejamento de recursos financeiros repassados para Estados, Distrito Federal
e Municípios para aplicação em ações no âmbito da Política Nacional de Educação
Permanente em Saúde - PNEPS e do Programa de Formação de Profissionais de Nível
Médio para a Saúde - PROFAPS”. Ela me deixou bastante preocupado com os rumos da
política específica e também com o próprio Sistema Único de Saúde - SUS. Parece
que poucas pessoas tiveram acesso a essa minuta. Isso
aumentou a minha preocupação e comecei a divulgá-la, pois se era para debatê-la,
antes da sua publicação, deveria partir de um “diagnóstico” mais participativo,
que só foi proposto posteriormente (A SGTES com a presença de representantes
dos estados fez uma oficina nos dias 7, 8 e 9/11, em Brasília). Mas como ela já
estava pronta desde outubro ou até a mais tempo (como consta no próprio texto),
então resolvi, deliberadamente, fazer o papel de cidadão militante, buscando
estimular o debate (atualmente muito fora de moda). Como tenho ouvido isso, não
esporadicamente, pensei: serei muito criticado (ou já estou sendo,
naturalmente) por querer politizar / ideologizar a partir de uma questão tão
banal, técnica, administrativa...(será?). Como o MS publica tantas portarias
todo dia, muitas vezes contraditórias entre si, poderia ser apenas mais uma.
Mesmo assim, por entender que estamos vivendo um momento muito delicado de
ameaças aos princípios da Reforma Sanitária, decidi continuar.
Em linhas gerais, concordo que há uma necessidade de certa
"flexibilização / desburocratização", visando à eficiência dos
recursos públicos e à efetividade das ações e serviços. Inclusive gostaria de
saber e debater também sobre outros recursos de outras fontes que não são
aplicados ou são gastos indevidamente (RENAST, emendas parlamentares, convênios
em geral...). Estamos avançando na “transparência” das informações, mesmo de
forma lenta.
Mas, voltando à questão central, poderia começar discutindo o mérito da
proposta da minuta. Por exemplo: será que a realização de reformas de unidades
de saúde significa aplicação em ações no âmbito da Política Nacional de
Educação Permanente em Saúde - PNEPS e do Programa de Formação de Profissionais
de Nível Médio para a Saúde – PROFAPS? Podemos considerar que seria um bom
debate para atores no âmbito dos estados, regiões e municípios. Entretanto, o
Artigo 6º dessa minuta chega ao absurdo de dispensar a participação, quando
descreve: "ficam dispensados de participação das Comissões de Integração Ensino
e Serviço - CIES". Isso é uma provocação! Porque o MS precisa definir
tudo? Não acreditam na capacidade dos outros entes federados? Talvez estejam
precisando correr atrás do prejuízo, por pressões de órgãos de controle
externo.
Embora tenha renovado as esperanças com a notícia de que o Conselho
Nacional de Secretarias Municipais de Saúde - CONASEMS não concorda com o teor
dessa minuta, podendo a mesma não ser aprovada na Comissão Intergestores
Tripartite - CIT. Espero que não seja mesmo! Mas, pelo sim e pelo não, diante
de tantas “surpresinhas” que vêm ocorrendo no SUS, mesmo se aproximando do
período natalino, melhor não acreditar em Papai Noel e pôr as nossas “barbas de
molho”. Esse fato merece ser discutido com a profundidade necessária para que os
dirigentes percebam que estamos atentos, sendo, portanto, uma boa oportunidade
para refletirmos sobre os rumos do nosso SUS.
O SUS, mesmo subfinanciado, avançou muito com o protagonismo das gestões
municipais. Na prática o SUS começou a acontecer, a partir de 1998, com as
transferências federais de forma direta, sobretudo para os municípios. O Piso
da Atenção Básica – PAB permitiu a implementação de sistemas locais de atenção
à saúde, sobretudo com a expansão da Estratégia de Saúde da Família. Os avanços
não foram maiores, justamente, porque não se conseguiu dá continuidade a esse processo
numa lógica de organização de redes regionais de atenção especializada, na qual
os estados têm um papel fundamental de coordenação. Hoje, a atenção
especializada é o grande gargalo do sistema, que compromete, inclusive, a
resolutividade da atenção primária e acaba estourando nas emergências
hospitalares. Entretanto, essa transferência de responsabilidades para os
municípios não foi acompanhada de financiamentos adequados dos estados e da
União, gerando instabilidades, principalmente nos municípios de pequeno porte
(70% dos municípios possuem menos de 20 mil habitantes).
Agora, essa situação se agrava, sobretudo por conta da redução do
Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI, um dos incentivos Federal,
sobretudo para as indústrias automobilísticas suportarem a crise do capitalismo
globalizado. Como o IPI compõe a base da receita do Fundo de Participação dos
Municípios – FPM as prefeituras estão em situação bastante complicada. E essa
crise rebate diretamente na Educação e na Saúde, reforçando que precisamos de
formas mais sustentáveis de financiamento. Porque não conseguimos fazer um
debate sério sobre uma Reforma Tributária? Porque o Governo Federal precisa ser
o “dono” do dinheiro da Nação? Será que não poderíamos ter um sistema de
arrecadação menos centralizado na União? Se as transferências diretas
promoveram avanços porque não diminuímos os financiamentos tutelados do MS?
Acredito que já temos maturidade para se avançar com políticas de Estado mais
sustentáveis, diminuindo as ações pontuais de programas de governos.
Novamente, voltemos à questão mais específica em tela, partindo do que
foi escrito na minuta da SGTES. Ela é de tamanha gravidade, pois inviabilizaria
qualquer possibilidade de participação da sociedade nessa área, ferindo
inclusive a LEI 8080/90, o Decreto 7508/11, que trata da regulamentação das
regiões de saúde e redes de atenção e a Portaria GM/MS 1996/07, que institui a
Política Nacional de Educação Permanente em Saúde – PNEPS. Portanto, a
discussão política, como sempre, precede e se faz necessária. Concentrar todo o
poder de planejamento/decisão na instância das Secretarias Estaduais de Saúde -
SES e Comissões Intergestores Bipartite - CIB é um grande retrocesso que é
muito perigoso, mesmo de forma temporária e bem “intencionada” (a História não
pode ser esquecida!). Isso praticamente acaba com os processos de
regionalização, que o próprio MS, recentemente, tem incentivado de forma mais
intensa e que os estados com muita dificuldade estão procurando avançar, com a
criação das Regiões de Saúde, Comissões Intergestores Regionais - CIR e
Comissões de Integração Ensino e Serviço - CIES, mas com funcionamento ainda
muito incipiente e fragilizado (Gestão sem poder, PDR sem PDI, redes
sem serviços, serviços sem profissionais, profissionais sem condições de
trabalho, trabalho sem vínculo, prestador sem regulação, discurso sem prática,
usuário sem atenção...). Dessa forma para que investir em Educação em Saúde?
Educação Permanente? Não há brecha na agenda.
Nesses termos, educação em saúde nunca será prioridade porque não é
estratégica para esse modelo vigente. Ela fortalece o trabalhador na busca de
reversão desse ciclo. Assim, ela é contra hegemônica, como todo processo
educativo que visa à emancipação cidadã e a transformação da sociedade (A tal
utopia revolucionária, hoje fora de moda). Como nosso SUS é ousado e
pretencioso! Mas essa é uma questão mais ampla e permanente para qualquer
cidadão (Ser crítico e não apenas consumidor). Não negamos os avanços, mas
temos muito para avançar e entendemos que é uma situação sempre processual e,
por isso, precisamos resistir a qualquer forma de retrocesso, mesmo os de
aparências mais sutis (“o Diabo mora nos detalhes!”).
A minuta parte de um “diagnóstico” muito simplista (sem analisar as
causas adequadamente). Ou seja, o problema de não gastar o dinheiro foi apenas
a existência dessas instâncias de participação mais descentralizadas (como se
as gestões centrais – MS e SES fossem as vítimas desse processo). E a
"solução" proposta para gastar o dinheiro (isso não tenho dúvida que
dessa forma aconteceria) é “liberar” as SES da necessidade de
pactuação/negociação com a sociedade organizada e representada nos poucos
espaços existentes. Na PNEPS, as CIES bem ou mal representam o tão desejado
quadrilátero (gestão, trabalhadores, usuários e instituições de ensino),
permitindo assim um maior envolvimento da sociedade na elaboração de
planejamentos regionais mais equânimes. Entretanto, de modo geral, as gestões
estaduais não têm demonstrado interesse nem empenho em participar das CIES.
Ora, se cada estado poderá “flexibilizar” as formas “duras” que o próprio MS
cria, não seria ainda mais necessária à participação das CIES no planejamento?
Queremos que todos os níveis do sistema cumpram de fato seus papeis, como
determina a legislação.
De certo modo essa medida, parece uma premiação para as gestões
estaduais que não demonstraram interesse (decisão política) em investir em
gestão do trabalho e na educação em saúde e muito menos na PNEPS, não constando
muitas vezes, nem mesmo, nos instrumentos de planejamento (PPA, LDO e LOA). Ao
contrário, há alguns anos que a discussão, principalmente por parte dos
gestores, é centrada na necessidade de “terceirização” da saúde, movido
principalmente pela dificuldade de contratar e gerenciar, sobretudo a categoria
médica. E, contra esse processo, os trabalhadores, por meio de suas
representações (sindicatos, conselhos e associações diversas), também têm
centrado toda a força reativa nessa pauta: a luta contra a “privatização /
terceirização” do SUS. Mas, essa luta tem sido inglória e muitas vezes
despolitizada, justamente pelos processos frágeis e fragmentados de educação e
participação social do nosso País. Um ciclo vicioso! Ah, cadê a classe
intelectual e “formadora de opinião”? De fato, sendo a academia mais “isenta”
dos efeitos das gestões (políticas de governo) poderia analisar mais
criticamente essas situações para além do sistema de produtividade da
CAPES/CNPq. Uma minoria se envolve de fato com questões de ordem
político-social, mesmo sentindo na própria pele as consequências. Ideologia?
Política? Participação? Movimento Sanitário? Parece que estamos ainda mais
movidos pelo tecnicismo e gerencialismo.
Atualmente conta-se nos dedos os verdadeiros defensores do SUS público,
universal e de qualidade. Talvez porque a “elite” use planos de saúde e assim
como aconteceu com a educação, sobretudo no ensino fundamental e médio,
utilizam o subsistema privado, deduzindo parte na declaração do imposto de
renda (isenção fiscal). E os procedimentos muito caros e complexos, não
cobertos pelos planos? Ah, para isso os “amigos do rei” conseguem acesso não
regulado pela equidade, senão se apela à justiça (judicialização) para garantir
o “Direito de Todos e Dever do Estado”.
Na área de Educação em Saúde também tivemos avanços importantes com uma
definição de uma Política com transferências de recursos. "Nunca na
História desse País" tivemos tanto dinheiro (Agora temos um fato novo:
financeiro sem orçamentário). Aliás, em muitos estados, esse é o problema
principal da não aplicação dos recursos (e não é de ordem técnica, diga-se de
passagem!).
Portanto, se o diagnóstico estiver correto (considerando apenas o fato
de que não foi gasto o recurso) estão errando no remédio ou, no mínimo, na
dose. E o paciente pode não resistir aos efeitos colaterais! Por isso vamos
lutar contra essas decisões (re)centralizadoras e verticais. Precisamos,
responsavelmente, investir esses recursos (de fato é um absurdo dinheiro de
2008 na conta bancária e as demandas gritando). Essa crítica vem sendo feita o
tempo todo, em diversos espaços, embora com muita dificuldade. Atualmente as
CIES ainda não representam o quadrilátero como deveria e precisam ser
fortalecidas, inclusive com Educação Permanente para os seus membros. Os
representantes da gestão são maioria, mas quase sempre temem em atuar de forma
mais crítica e politizada, pois seus vínculos (cargos) muitas vezes "não
permitem" (são muitas vezes tutelados). Os sindicatos dos trabalhadores
desconhecem o espaço e a proposta da PNEPS ou percebem que esses espaços estão
desprovidos de poder e não prioriza a participação. O segmento dos usuários do
sistema, que no controle social é a parte mais numerosa e também a mais frágil,
pois os movimentos sociais e os próprios conselhos de saúde também estão com
muitas dificuldades de articulação. Por isso eles devem deixar de existir? Ou é
papel do Estado promover ações para que esses possam cumprir sua missão?
É fato que nossa jovem democracia, no geral, ainda não tem muita
tradição participativa, até por conta das deficiências do nosso sistema
educacional, que reproduz a “ordem estabelecida”. Muitas pessoas, além de
temerem perseguições, perdas de “privilégios” ou possibilidades de favores se
deixam cooptarem ou se calam diante de ameaças ou de direitos negados.
Nessa pauta específica da educação em saúde, entendo que o segmento das
instituições de ensino deveria ter um maior protagonismo no processo de integração
ensino e serviço (se temos conhecimento, vocalização, poder de formar opinião,
vínculos seguros, "independência" da gestão...) poderíamos participar
mais ativamente desse processo, afinal, gerar conhecimento faz parte da nossa
missão finalística. Mas, muitos acham que é perda de tempo participar disso
(afinal somos da elite. “Deixa isso pro povão”!). Se o ciclo é esse, não há
jeito! Deixa a gestões livres... (sem controle da sociedade). Aqui ainda
estamos resistindo e acreditando na força da militância em defesa do SUS
(espero não ser uma andorinha só, pois o verão aqui só está bom para quem pega
um bronze na beira da praia). Como o brasileiro não desiste nunca, por
enquanto, estamos resistindo, mas precisamos ampliar o debate com maior
participação social.
Em suma, fica evidente que os mentores de proposta dessa natureza partem
de um diagnóstico de que a burocratização é devido ao processo de descentralização
/ regionalização (que na verdade ainda não aconteceu de fato). Ou seja, na
visão do MS (e talvez de outros atores) a centralização favorece a aplicação
dos recursos e gastar o dinheiro é o que importa nesse momento! De fato, fica
muito claro, que se pretende anular não só os Planos de Ações Regionais de
Educação Permanente em Saúde – PAREPS e as CIES, mas também as próprias
Comissões Intergestores Regionais - CIR. Uma vez que explicita que os novos planos de trabalho não precisam de
aprovação nessas instâncias: “ficam
dispensados de aprovação prévia na CIR”, como se esses espaços fossem os únicos
responsáveis pela não aplicação dos recursos da Política Nacional de Educação
Permanente em Saúde - PNEPS e do Programa de Formação de Profissionais de Nível
Médio para a Saúde – PROFAPS.
Em Pernambuco, por exemplo, isso não é verdade! Ao contrário, pois temos
resistido bravamente por muito tempo e só agora que apareceu uma luz: a tão
solicitada descentralização dos recursos da PNEPS para as regiões de saúde. Por
isso, devemos ter o cuidado para não "jogar fora a água suja junto com a
criança".
Precisamos gastar, mas gastar bem e de acordo com nossos planejamentos e
pactuações possíveis, num contínuo processo que também é pedagógico (Educação
Permanente no SUS-Escola)! Ampliar as possibilidades de gastos poderá,
inclusive, significar apenas a substituição de fontes de recursos de outras
áreas, sem avanços para a educação em saúde. Ou será que é isso mesmo que se
pretende com essa proposta?
Não acreditamos que a centralização das decisões e recursos seja o
melhor caminho. Pelo contrário, historicamente esse tem sido um dos principais
problemas do SUS! “Enquanto estamos inconformados, vamos procurando saídas. A
acomodação é o pior caminho”. Por isso, precisamos ampliar esse debate,
estimulando o diálogo que é sempre necessário para continuarmos avançando. Somos
ou não um Estado Democrático de Direitos e uma República Federativa? VIVA O SUS!!!